[Reproduz-se aqui o texto que serve de prefácio à obra
As aventuras de Sindbad, de Gyula Krúdy para apresentar ao leitor português um escritor totalmente desconhecido entre nós]
Um prefácio sobre como a magia
d’As Mil e Uma Noites viaja pelo mundo e o vai
transformando sendo também por ele transformada
(E depois as coisas ficam negras)
Quando um editor publica um clássico «estranho», o leitor pode perguntar-se como é que o dito editor deu com aquela obra e por que motivo considera importante publicá-la. Desse processo e dessas razões se falará neste curto prefácio.
Quando Gabriel García Márquez (1927-2014) estava no seu apogeu literário, foi certa vez questionado por um jornalista cultural que o confrontava com o facto já comummente aceite de que tinha sido ele, García Márquez, a «inventar» o Realismo Mágico, nome que a crítica e a academia davam ao tipo de obras produzidas durante décadas por boa parte dos escritores sul-americanos de língua hispânica. Márquez contradisse o jornalista de forma simples: «quem criou este tipo de literatura foi Juan Rulfo.»
Juan Rulfo (1917-1986), escritor mexicano com uma obra curta, mas universalmente reconhecida como inovadora e brilhante, um autor que vivia longe dos holofotes e produzia uma literatura escassa que era admirada por leitores selectos em todo o mundo, foi confrontado com a afirmação de García Márquez e admitiu que nada tinha inventado e que se inspirava no estilo e na temática das obras do Prémio Nobel islandês Halldór Laxness.
Assim, na busca da origem de uma escola literária especificamente sul-americana, o jornalista tinha acabado num Autor da América Central que o remetia para uma ilha a meio caminho entre a América do Norte e a Europa. Em risco de perda de uma literatura de marca--registada sul-americana, a demanda pelas suas origens fraquejou e tanto os jornalistas como a academia preferiram deixar a questão morrer. Contudo...
Halldór Laxness (1902-1998), em diversas entrevistas e escritos sobre literatura em geral, dizia-se inspirado sobretudo por dois grandes nomes: o checo Bohumil Hrabal (1914-1997) e o húngaro Sándor Márai (1900-1989). Estes dois grandes nomes da literatura universal, naturais de dois dos países que tinham feito parte do Império Austro-húngaro, reconheceram abertamente que a sua grande influência fora Gyula Krúdy.
Passa muitas vezes ao lado do leitor contemporâneo, para não falar da crítica e da academia, a «geocultura» de um passado relativamente próximo. Com efeito, há pouco mais de 100 anos, o Império Austro-Húngaro era uma das grandes nações europeias. Dentro desse império, literaturas em línguas diversas tinham um espaço comum geralmente oriundo de traduções para a língua institucional – o alemão. A literatura húngara tem, pois, uma longa tradição e um impacto internacional que hoje cai muitas vezes no esquecimento.
Bastará, como exemplo, referir que no Império Britânico o grande rival de Charles Dickens a dar à estampa
best-sellers era o escritor húngaro Mór Jókai (1825-1904), o escritor preferido da Rainha Victória, cujos livros, em tradução para inglês e noutras línguas, se vendiam em quantidades astronómicas para a época. A literatura húngara era uma literatura internacional, culta, cosmopolita e diversa. Se tivermos em conta a dificuldade de tradução do húngaro, que é, juntamente com o finlandês, uma das poucas línguas ocidentais que não têm a base comum indo-europeia que une o hindi e o alemão ou o português nas suas origens remotas, teremos uma noção da influência do Império Austro-Húngaro e do seu poderio cultural, capaz de impor uma língua cujo sistema linguístico é totalmente diverso do de quase todas as línguas do chamado mundo civilizado ocidental.
Voltemos então a Gyula Krúdy (1878-1933) – ou Krúdy Gyula, uma vez que em húngaro a ordem do apelido e do nome é invertida, tal como acontece em chinês – sem pretensões de fazermos aqui qualquer tipo de biografia. Bastará dizer que desde jovem teve a paixão da escrita e não obedeceu à vontade paterna de se formar em leis, pelo que, quando em 1896 se mudou para Budapeste, foi deserdado. Viveu da escrita, e de que maneira: Krúdy publicou 86 romances, mais de 3000 contos e cerca de 1200 artigos, ensaios, reportagens e crónicas.
Quem queira saber e investigue nas mais diversas fontes descobrirá que Krúdy foi o escritor húngaro mais famoso do seu tempo, traduzido em dezenas de línguas e que as suas obras, ao longo da vida e posteriormente, foram por diversas vezes adaptadas ao cinema e levadas ao palco. Poderá também o leitor descobrir que o auge da sua carreira foi interrompido pela Primeira Guerra Mundial [Ainda assim, em 1915 publicou o seu segundo volume reunindo as aventuras de Sindbad e, em 1916, em plena guerra, recebeu o Prémio Literário József Ferenc.] e que, depois desta, nos anos 20, foi vítima de ataques vários à sua obra e reputação após a queda da República Soviética da Hungria.
Descobrirá também como, daí para a frente, apesar de continuar a ser um escritor de grande êxito, as condições económicas do país e a falta de receitas das vendas dos seus livros no estrangeiro acabaram por condená-lo a anos de dificuldades económicas, incertezas, bebida e muitas dívidas. Como em 1930 recebeu o Prémio Baumgarten, o mais importante prémio literário húngaro. Como o seu nome foi, de alguma forma, restabelecido com a publicação do romance de Sándor Márai
Sindbad Regressa a Casa, em 1940, uma obra que ficcionava os últimos anos de vida de Krúdy, fazendo referência ao seu herói icónico no título. Como nos anos 70 foi finalmente publicada a recolha das suas obras completas em dezenas de volumes. Como, nos anos 80, o futuro Nobel Imre Kertész (1929-2016) admitiu que a língua húngara na sua forma escrita, como os escritores húngaros a usaram ao longo do século xx, foi a língua «criada» por Krúdy. Muitas outras referências poderiam ser aqui dadas para demonstrar de que forma a obra de Krúdy teve uma influência transversal nos países que estiveram ligados ao antigo Império Austro-Húngaro e aos países vizinhos, tendo o leitor percebido, entretanto, como é que a sua influência chegou às literaturas escandinavas e às literaturas das Américas Central e do Sul.
Mas se falamos sobre a ascendência da obra de Krúdy não podemos deixar de introduzir o clássico que determinou a criação do seu personagem icónico, cuja presença literária na sua ficção curta se recolhe neste volume pela primeira vez em tradução portuguesa. No século xviii o polímata Antoine Galland viu-se na posse de um antigo manuscrito que recolhia várias histórias de tradição oral do folclore árabe. O título da obra era
As Mil e Uma Noites e o manuscrito em si estava incompleto.
Galland empenhou-se em traduzi-lo adaptando a rudeza e a imperfeição de histórias de registo oral à beleza e sensibilidades do seu tempo e da literatura francesa. Mas uma das coisas que mais perturbavam Galland era o facto de o manuscrito apenas ter perto de 200 noites. Não tinha ainda acesso às recolhas de contos tradicionais árabes que usavam designações como «mil e uma» para significar «muitos», o que não queria dizer que ali se recolhessem exactamente 1001 histórias. Assim, frustrado nas suas intensas buscas por uma cópia completa d’
As Mil e Uma Noites, Antoine Galland juntou à sua tradução do manuscrito a de outros que recolhiam outras tantas histórias tradicionais (e quando descobriu que, mesmo assim, ia ser difícil chegar às 1001, deixou, a certa altura, de numerar as noites, pois assim talvez o leitor não o notasse). Ora, um dos manuscritos utilizados reunia as aventuras de Sindbad, o marinheiro, outra famosa recolha de histórias tradicionais árabes em nada relacionada com
As Mil e Uma Noites, mas que deste modo passou a integrar a tradução literariamente aprimorada da obra e, como tal, veio a tornar-se parte de um êxito em traduções que entretanto apareceram um pouco por todo o mundo. A tradução para húngaro de
As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland, foi uma das leituras de infância de Krúdy. E Sindbad o nome escolhido para um herói muito especial.
Na primeira década do século xx, Krúdy tinha imensas colaborações em jornais e revistas e a sua pena produzia contos e artigos em catadupa (o que, à semelhança do nosso Camilo, que também viveu da escrita, nada punha em causa a sua qualidade literária). A produção de Krúdy ia da história mais tradicional, com princípio meio e fim, a obras literariamente experimentais em que «brincava» com ideias e conceitos. Mas Krúdy procurava conciliar ambas e, nessa altura, surgiu-lhe a ideia de utilizar Sindbad, o marinheiro. Sindbad era uma alcunha que o próprio personagem adoptara ou com a qual algum dos seus confrades o designara. Ao longo de dezenas de contos e dois romances (que não se recolhem nesta colecção), Sindbad pouco mais é do que, precisamente, uma alcunha: não tem nome próprio e possui pouca substância. É um personagem pouco palpável, quase irreal. Na visão que Sindbad tem de si mesmo e naquela que dele fazem quantos com ele conviveram está a essência de Sindbad, o marinheiro de
As Mil e Uma Noites. O aventureiro irrequieto e eternamente insatisfeito numa demanda por algo maior. Mas o Sindbad de Krúdy não procura tesouros, procura Amor.
O Sindbad de Krúdy voga por um tempo contemporâneo ao do seu autor, o final do século xix e o começo do século xx, saltando dos braços de uma apaixonada para o colo da seguinte. Um Don Juan, um novo Casanova. As aventuras de Sindbad, «o marinheiro das mil e uma noites», é, ao mesmo tempo, uma ironia colegial sobre o amante nocturno e uma alusão ao herói inconstante, irrequieto e incapaz de qualquer tipo de compromisso que o alfinete (do verbo
alfinetar para quem suspeite) a um lugar específico ou a uma determinada amante. Se as primeiras histórias seguem a estrutura das narrativas de
As Mil e Uma Noites, com a sua sucessão, contudo, os contos e o próprio personagem vão-se tornando cada vez mais independentes.
Assim, as aventuras de Sindbad, o amante de todas as mulheres e o amado de todas elas – seja essa mulher a filha do ferreiro numa pequena aldeia ou a actriz célebre numa metrópole famosa –, dividem-se geralmente em três ciclos. No primeiro, Sindbad visita as mulheres que amou: procura reviver os amores passados que idealiza como tendo sido belos. O presente nada lhe traz de novo: Sindbad já viveu tudo, já tudo experimentou. Nessas histórias passado e presente misturam-se, bem como os seus discursos e planos temporais (da mesma forma como, umas décadas depois, o Prémio Nobel Mario Vargas Llosa – n. 1936 –, herdeiro do Realismo Mágico, viria a integrá-los nas suas obras com louros de pioneiro).
Na passagem do primeiro ciclo de histórias para o segundo, Sindbad vai percebendo que a idealização do amor raramente corresponde ao que foi a realidade da vivência dessas relações. Não é possível fazer renascer o passado e a memória é sempre mais bela do que a realidade. Nesse segundo ciclo, Sindbad procura então reinventar o presente e torná-lo mais belo: adopta os prazeres da gastronomia e da boa vida. Mas essa mesma vida vai-se tornando mais e mais opressiva. Há toda uma sensação de decadência que se alastra pelas histórias. A liberdade da juventude, mas também os valores sociais, perderam-se. Sindbad torna-se mordaz face a um mundo que se aproxima do fim.
O terceiro ciclo de histórias de Sindbad, surgido após a Primeira Guerra Mundial, apresenta-nos o herói morto, mas, desta feita, vivo na lembrança das mulheres que amou e que o amaram. Também aqui, então, Sindbad nunca chega a ser um personagem completamente real: é uma lembrança grada, uma memória apaixonada, uma figura por entre as brumas do tempo que se esvanece (do verbo
esvanecer para quem suspeite) no passado.
O jogo do Amor é, ao mesmo tempo, algo leve e pesado, com regras e sem elas. A palavra «jogo» não é inocente: homens e mulheres testavam-se, aprendiam e, derradeiramente, faziam as suas escolhas para a vida ou para um certo período. Claro que essa realidade está mais longe daquela que nós, nos países de moral católica mais rígida, alguma vez vivemos. Esta realidade que dava à própria mulher um papel mais activo nada tem que ver com a nossa tradição do sul da Europa, mas isso não quer dizer que tenha sido ficção. Existiu num espaço real e num tempo concreto bastante mais modernos do que hoje podemos imaginar. E, chegado a este ponto da viagem, o leitor começa a aperceber-se de que aprendeu tanto, tanto. As histórias que leu assemelham-se, mas, na sua parecença, há sempre pequenas variações. Com elas o leitor conseguiu entrever um lampejo da velha Europa, da sua estratificação social, moral e ideológica. Por outro lado, o leitor acompanhou as aventuras finais de um galã europeu nos seus
affaires, no cortejo amoroso, esse jogo do enamoramento cujas regras vigoraram na Europa desde o século xii quando Andreas Capellanus as estabeleceu para os longos séculos vindouros. O leitor também tem, agora, uma percepção da forma diversa como os homens vêem e idealizam o amor e a relação amorosa, e, por outro lado, a perspectiva feminina sobre o mesmo. E, por fim, o leitor ganhou também uma sensibilidade para o que se perdeu.
Krúdy é o pintor de um mundo em decadência no começo do século xx, um mundo que entra em desmoronamento total no intervalo das duas guerras. Krúdy pinta o fim do Amor pelo Amor, o fim da capacidade de sacrifício pelo outro e o fim dessa forma essencial de comportamento humano que pautava uma cultura eminentemente europeia: a cortesia. Não admira que seja muitas vezes associado a Joseph Roth e ao mais tardio Buhomil Hrabal: são escritores de um génio literário incomparável, mas são também, ao mesmo tempo, as vozes literárias mais conscientes do fim de um mundo.
Algures entre as guerras mundiais perdeu-se esse mundo e perdeu-se esse Amor. Décadas mais tarde, uma realidade muito próxima daquela que Krúdy e escritores seus contemporâneos descrevem era a base de grande parte da ficção (e de uma certa realidade) do tal Realismo Mágico centro e sul-americano, em sociedades que eram tão culturalmente diversas e se situavam, quase literalmente, do outro lado do mundo.
Quem leia as obras de Krúdy ou Roth e observe o retrato do jogo amoroso repara em algo de semelhante nas literaturas de García Márquez, Llosa ou tantos outros. A mulher com muito mais poder de escolha do que os paradigmas sociais levariam a crer e, muitas vezes, com o domínio do jogo. Mas também a proximidade maior entre os seres humanos, uma noção hoje quase arcaica de camaradagem… E ali, ao lado, em português, Vinicius de Moraes escrevia uma
Carta ao Tom, corria o ano de 1974, em que dizia quão importante era «inventar de novo o amor».
Possamos nós extrapolar que cada fim de um ideal de Amor seja o fim de um mundo, quando a capacidade de sacrifício pelo outro for substituída por egoísmos, quando o Amor deixar de ser o objectivo maior dos seres humanos, esmagado por rituais e trivialidades que o esvaziam de substância, e observando como, no tempo de Krúdy ou de Roth, no final desse trajecto de decadência, esperavam duas guerras mundiais, veremos, talvez com outros olhos, o mundo em que vivemos e uma guerra que começou geograficamente próxima das outras duas e que já não envolve apenas a Ucrânia e a Rússia.
Hugo Xavier
Editor