Anunciamos esta semana um novo projecto em crowdfunding: a Ficção de António Ferro.

Enquanto editor, este é um caso em relação ao qual sinto que é importante explicar a escolha que trará certamente alguma polémica. António Ferro é sobretudo lembrado como o principal dinamizador da máquina de propaganda do Estado Novo e esse papel tem estigmatizado o Autor ao longo das décadas.

Conheci a escrita de António Ferro antes de saber quem tinha sido. Foi enquanto adolescente que consumia livros, como a maior parte dos adolescentes meus contemporâneos consumia cervejas, que tropecei nele num alfarrabista, na Feira do Livro de Lisboa, numa banca que tinha livros a x escudos – não me lembro ao certo, mas eram uma pechincha, mesmo para a minha magra bolsa de então.

Li a novela Leviana nessa altura, surpreendido por não ter encontrado antes nada do género na literatura nacional. Aliás, nem antes, nem depois dos anos 20 em que tinha sido originalmente publicada (e eu na altura já tinha lido muita coisa). Curioso, investiguei o Autor. Os meus habituais conselheiros de leitura (familiares, amigos, professores...) recomendavam-me que o lesse, mas explicavam-me que não deveria publicitar que andava a ler António Ferro.

Já na universidade fiz um trabalho de comparação entre duas obras provocatórias: Leviana, de Ferro, e O Amor É Fodido, de Miguel Esteves Cardoso. Nessa altura já tinha lido muito mais António Ferro, da mesma forma que tinha investigado a tradição de namoro que existia entre os intelectuais e as ditaduras do começo do século xx.

Disse-o na altura e quero dizê-lo aqui e agora: a ficção de António Ferro é obra dos anos 20 do século xx. Nesse tempo, Ferro tinha preocupações essencialmente culturais e de criação artística. Estava, como os jovens ligados a qualquer movimento da moda em qualquer época, entusiasmado com a possibilidade de mudar o mundo. A escrita de Ferro é a prova de que qualquer tipo de ambição política ou social estava longe de ser um objectivo: nenhuma pessoa com ambição política se arruma num movimento de vanguarda, que, por definição, o afasta dos referentes de toda uma população. A escrita de Ferro, e isso está bem patente na sua ficção, é erótica, voraz, procura chocar, procura o escândalo. Também nessa década, a sua peça de teatro Mar Alto leva a verdadeiras batalhas de pugilato que atravessavam o centro de Lisboa, tendo por combatentes os «novos» e os «antigos». Esse é o tipo de publicidade que afastaria qualquer pessoa de uma carreira política.

Quanto aos passos seguintes na vida profissional de António Ferro após esta fase de criação artística e ainda antes do começo da sua carreira política, permitiram o surgimento de um dos melhores cronistas e certamente o melhor entrevistador português do seculo xx.

Em nenhuma passagem deste texto procuro ou procurarei justificar ou desculpar António Ferro. Em primeiro lugar, porque não me cabe esse papel (nem a ninguém). Em segundo lugar, porque basta olhar em redor, para os intelectuais do seu tempo, para perceber que era transversal e transcontinental o entusiasmo que nutriam pelas ditaduras nascentes por verem nelas a possibilidade de reinventar uma sociedade amorfa e corrupta. A quantidade de intelectuais em todo o mundo que apoiou a primeira fase do Nacional Socialismo na Alemanha ou dos fascismos em Itália e Espanha era imensa (começando em nomes tão inusitados como H.P. Lovecraft, passando por génios das letras como Ivo Andric e acabando nas cartas de apoio entusiástico de Mahatma Gandhi para Adolf Hitler. Poderia citar aqui umas largas centenas de nomes...). Essa ânsia de mudança que movia os intelectuais para o apoio aos novos ditadores era uma consequência da história podre europeia que culminou na Primeira Guerra Mundial. Esses intelectuais foram divididos entre os dilemas do ideal e os dilemas da aplicação prática. Muitos não recuperaram, quase todos se tornaram figuras dúbias e pouco coerentes que os nossos tempos não conseguem enquadrar nem perceber.

A ficção de António Ferro está longe de tudo isso. É provocadora, é subversiva. Toda ela é sobre mulheres e tipos de mulheres. Nessas mulheres estão personificados os tempos de mudança de uma sociedade acomodada para os tempos modernos, para uma nova realidade. As mulheres dos textos de António Ferro comandam a acção, comandam os homens, comandam os tempos. Muito poucas escritoras feministas ou com preocupações feministas conseguiram projectar «a mulher» desta forma. E não é essa perspectiva bem mais interessante para qualquer apaixonado por boa literatura do que o fado do choradinho da culpabilização retrospectiva?

Enquanto leitores, descubram o António Ferro escritor.

Hugo Xavier
Editor

P.S. O próprio António Ferro esclarece qual o desígnio da sua "política do Espírito", mais tarde em 1932: «Um povo que não vê, que não lê, que não ouve, que não vibra, que não sai da sua vida material, do Dever e do Haver, torna-se um povo inútil e mal-humorado. A Beleza - desde a Beleza moral à Beleza plástica - deve constituir a ambição suprema dos homens e das raças. A literatura e a arte são os dois grandes órgãos dessa aspiração, dois órgãos que precisam de uma afinação constante, que contêm, nos seus tubos, a essência e a finalidade da Criação.»