O tradutor vasculha nos seus papéis, procura, encontra, lê e relê, confirma. Será possível? As muitas horas à secretária tê-lo-ão prejudicado, a má postura terá afectado o bom funcionamento do encéfalo? Ninguém o sabe! Ah, aquilo que a ciência desconhece ainda! Mas, de facto, está lá escrito 1879. Sim, foi esse o ano da primeira edição, e nenhuns óculos, lupa ou microscópio alterarão esse facto.1879! Ora, mas isso foi no tempo dos afonsinhos, em mil oitocentos e troca o passo, uma daquelas épocas de daguerreótipos, sépia, carroças e juntas de bois nas ruas da cidade. E em Estocolmo? Sim, sem dúvida!
O espanto do tradutor aumenta, pergunta-se como será possível, tudo isto é bizarro mas, com o diabo, não foi ele quem sugeriu a publicação do livro? Com que se espanta o idiota, se já conhecia o livro? Estará a perder capacidades, o seu cérebro mirra? É bem possível, e a ciência nem tudo sabe, mas o que todos podem saber é que
O Salão Vermelho, a obra que tornou famoso August Strindberg – nome incontornável da literatura sueca e mundial –, foi publicado em 1879. Ora, e qual o motivo de tanto espanto quando tínhamos já a
Bíblia, a
Ilíada e a
Odisseia? Bem, bem, a admiração não se deverá ao ano de publicação, pois os monges copistas eram já uma relíquia do passado, uma classe extinta, e não era assim tão difícil imprimir um livro, mas o conteúdo do livro, esse, é algo que pode e deve ser admirado. Porquê? É muito simples: um grande escritor – um verdadeiro escritor – é aquele que, em vez de se preocupar com jogos de palavras, trocadilhos, virtuosismos linguísticos, roupa a secar em estendais ou lirismos bacocos, tem a capacidade de observar e descrever aquilo que permanece inalterado e, em última instância, serve de fundamento a uma obra imortal: a relação do homem consigo, com os outros, com o mundo. Isso não mudou, e por mais que a tecnologia separe 1879 de 2015, o homem é o mesmo.
Pessoas invejosas, mesquinhas, corrupção, mentiras, compadrios, obscuras práticas empresariais, a contínua luta do indivíduo íntegro contra um sistema que apodrece por dentro? Sim, está lá tudo, como constata Arvid Falk, o aspirante a escritor que se demite de uma função pública corrupta e incompetente para encontrar uma situação pouco diferente na área editorial e no jornalismo em que, por necessidade, tem de trabalhar. Escritores, pintores, escultores, actores, artistas em geral? Ah, sim, também esses rodeiam Falk, e também eles passam fome, também eles têm de engolir o orgulho, sorrir, calar-se, dar palmadinhas nas costas, vender-se (é, ou não, a mais velha profissão do mundo?) para subir a estreita escada do sucesso. Alguns conseguem-no, outros não.
A verdade é que não mudamos, o mundo é sempre o mesmo, e o tradutor e editor pensa como é estranho que em Portugal nunca se tenha publicado a ironia de Strindberg n’
O Salão Vermelho, como nunca se deu aos leitores a oportunidade de conhecer todas aquelas personagens que lhe proporcionam divertidas horas de tradução, como é possível que tal obra tenha, até hoje, permanecido inédita no nosso país.
A resposta, contudo, talvez não seja muito difícil de encontrar: ver o nosso reflexo num espelho nem sempre é fácil. Mas há que fazê-lo, ou corremos o risco de sairmos à rua com a cara suja. Eis a oportunidade.