Há umas semanas informámos os nossos leitores de um atraso na publicação de um livro que teve de passar para o ano que vem.

Infelizmente, a situação repete-se.

É sempre difícil: trabalhamos em crwodfunding, o que significa que quando lançamos um projecto estamos ainda incertos da sua calendarização, pois o anúncio é feito com antecedência.

Acontece, sobretudo com livros de maior dimensão, que nem sempre conseguimos prever com rigor as vicissitudes de cada tradução ou edição.

São três os títulos que serão adiados para o primeiro trimestre de 2019:

Ficção Curta Completa, de Herman Melville: trata-se de uma revisão muito complexa de textos de um dos mais notáveis escritores de língua inglesa de todos os tempos, cheio de referências históricas e quotidianas de outras épocas. Houve vários atrasos na tradução, e, por esse motivo, a revisão ressentiu-se do atraso. São perto de 700 páginas que não conseguiremos ter prontas este ano.

Obras Completas de Luiz Vaz de Camões, Volume II: Lírica e Teatro. Neste caso, trata-se da fixação de texto de textos antigos, bem como da escolha das fontes a seguir. A Lírica está pronta, mas o Teatro tardou.

As Mil e Uma Noites, Volume II. Neste caso, deixamos o tradutor falar:

Caro leitor,
a publicação do segundo e último volume da tradução d’ As Mil e Uma Noites estava prevista para esta época natalícia de 2018. Infelizmente, a complexidade desta tradução e o rigor exigido não permitirão cumprir esse prazo, e, como tradutor desta obra, gostaria de prestar alguns esclarecimentos para que se entendam os motivos deste atraso.

A prosa dos manuscritos árabes — nomeadamente do manuscrito principal usado como fonte, com as cotas 3609-3611 arabe da Bibliothèque Nationale de France — não é fácil, não tanto pela época em que foi produzida — século XIV, sendo considerado o manuscrito mais antigo e primitivo d' As Noites — mas pela linguagem usada, que, ao contrário do habitual na esmagadora maioria de escritos árabes antigos, não é o chamado árabe padrão usado na escrita e em circunstâncias oficiais, mas uma linguagem que mistura esse árabe padrão com o árabe coloquial, nomeadamente, as línguas árabes coloquiais da Síria e do Egipto da época. Porque estas línguas árabes coloquiais não eram usadas na escrita, não existem muitas outras fontes de comparação e muitos vocábulos e expressões não constam sequer nos dicionários clássicos, nem sobreviveram nas referidas línguas até aos dias de hoje. Só no século XIX, pela mão de diferentes lexicógrafos, tanto no Líbano, como em França e Inglaterra, começaram a surgir dicionários contendo elementos mais orais e vernaculares da língua, alguns incluindo mesmo expressões citadas directamente dos manuscritos d' As Noites e outros similares. Além do mais, As Mil e Uma Noites — e, por este título, estamos sempre a referir-nos às versões dos manuscritos mais antigos — contêm também algumas expressões que lhe são únicas, não aparecendo noutros escritos que se reportam à mesma época e que também incorporam a linguagem vernacular, tais como As Histórias Maravilhosas e Estranhas Novas ou Sindbad, o Marinheiro.

No que diz respeito à prosa, a questão linguística que acabou de ser explanada talvez seja o ponto mais complexo da tradução, mas não o único. O que é certo é que a complexidade deste texto árabe implica uma dedicação de tempo muito superior à que inicialmente foi prevista, de forma a ser possível comparar um enorme conjunto de fontes árabes, tais como outras versões d’ As Noites, dicionários, livros de viagem, geografia, ficção, poesia e por aí fora, sem descurar também outras traduções d’ As Noites. Costumo dizer que quem traduz literatura contemporânea árabe, comparando com traduções já feitas noutras línguas, se calhar tem alguma falta de imaginação, de conhecimentos básicos ou de confiança; mas quem traduz literatura antiga sem comparar com o que já foi feito, é, no mínimo, irresponsável.

No entanto, verdade seja dita, não é na prosa que se encontram as dificuldades maiores, mas na poesia. Os poemas d’ As Mil e Uma Noites não são meramente decorativos, muito pelo contrário, complementam o sentido da prosa, trazendo elementos à narrativa em que a linguagem da prosa não se afigura a mais adequada, e, sem esses elementos, a narrativa não pode ser compreendida plenamente. Não quis esta tradução fazer o mesmo que outras já fizeram, nomeadamente, descurar os poemas, seja através da sua simples eliminação, conversação em prosa ou tradução livre. O facto de ser importantíssimo trazer a letra e o sentido desses poemas para português leva a que o tradutor, mesmo que quisesse improvisar, fique com uma margem de manobra muito reduzida. E, por outro lado, também é necessário que os poemas em português soem a poemas porque, caso contrário, seriam prosa em verso. Juntar estes dois critérios, o de sentido e significado com o estético, implica um investimento de tempo bem maior do que o da prosa.

Dado tudo quanto antecede, não poderia eu deixar de apresentar as minhas mais sinceras desculpas por este atraso e pelo tempo demasiado largo entre a publicação do primeiro e do segundo volume, na expectativa de que o leitor compreenda que este atraso é ditado pelo rigor exigido a esta tradução.
                                                                                                                  Hugo Maia (tradutor)



Assim, o que podemos prometer aos leitores é que a espera vai valer a pena e que estas situações nos servirão para que, de futuro, comecemos a estimar melhor os tempos de tradução.

Os Editores